Agora que tenho um pouco mais de tempo para mim e para organizar a vida fora do restaurante, penso por vezes no meu percurso até aqui.
Penso que nunca vos falei dos detalhes do meu primeiro curso de cozinha. Há na padaria algumas fotografias da escola, e contei-vos muito por alto como os primeiros dias na cozinha correram.
Não sei se conhecem o Blogue Zine de Pão escrito pelo Paulo que vive em Estocolmo, ou se seguem a sua página do facebook. O Paulo tornou pública a sua luta quando decidiu deixar a sua carreira e tornar-se Padeiro.
Eu passei exatamente pelos mesmos problemas. Como temos educação superior é-nos imediatamente vedada a entrada em cursos profissionais equivalentes ao ensino secundário.

Após muitos e mails, reclamações, e entrevistas, restaurantes onde trabalhei sem vencimento para ganhar experiência, meses de dúvidas e incerteza, lá consegui um lugar num curso de cozinha.
Este curso decorreu como se lembram numa grande escola secundária profissional onde partilhávamos a cozinha com os estudantes adolescentes.

Os meus colegas eram uma simpatia, mas na verdade, apenas um ou dois estavam interessados na cozinha ou em trabalhar.
Eram emigrantes de outras culturas, habituados a viver dos subsídios, que tinham sido mais ou menos forçados a fazer este curso. E no meio deles- eu.
Como ninguém dizia mais de meia dúzia de palavras em sueco, informaram-nos no princípio do curso que não podíamos fazer exames de higiene ou culinária e por isso só poderíamos trabalhar como ajudantes de cozinha.

Reclamei, e lá fiz sozinha alguns exames do curso de chef que depois conclui no meu segundo ano de formação.
Durante todo este tempo que passei na cozinha rodeada de pessoas que nunca tinha pegado numa faca, valeu-me a minha professora Christine, de quem já vos falei, e que fez um currículo só para mim.

Alguns dias foram mais complicados que outros. Eu estava numa grande cozinha e com a Christine a ensinar-me a matar lagostas e abrir vieiras rapidamente, por isso não podia pedir mais.
Mas enquanto os meus colegas passavam quatro horas para em grupo fazer uma panna cotta, eu queria aprender mais e mais.

Na cozinha connosco estavam também os estudantes adolescentes e outros professores. E foi num dia que eu me neguei a fazer a preparação dos pratos dos miúdos porque queria ter os meus próprios pratos, que um dos professores, um tipo grandalhão e gordo, me disse as palavras que oiço ainda frescas na minha memória.
“Ana, és muito velha e começas muito tarde, nunca, nunca vais trabalhar num restaurante. Os meus alunos estão aqui “ – e levantou o braço acima da cabeça – ”e tu estás aqui” – e baixou o braço aos joelhos.
E embora a minha professora Christine me tenha dito depois que na verdade eu era a melhor aluna da escola (o que não era difícil) foram palavras que nunca esqueci.
Passados muitos meses, já trabalhava no Kramer, certo dia estava eu nas traseiras com o meu head-chef a apanhar ar, quando esse professor e a minha querida Christine passaram por nós.
Ele certamente já se havia esquecido do que me tinha dito. Mas quando eu de uniforme e chapéu de chef lhe apresentei o meu head-chef e lhe disse que sim tinha concluído o resto do curso com nota máxima e que de facto trabalhava como chef num restaurante, senti-me vingada.

Olho por vezes para a Ana que fez esse primeiro curso, vejo as minhas dúvidas e receios, olho para o meu uniforme branco “um número serve todos” o avental branco que eu detestava. O chapelinho de aprendiz ou padeiro.
E vejo-me agora com um uniforme encomendado só para mim, com o meu nome. Com os meus colegas que são como família e um emprego de que gosto, e ainda que com as minhas lutas e desapontamentos próprios da vida, tenho vontade de dar um abraço à Ana de há dois ou três anos. “Não desistas, não te deixes abater, não imaginas o que está guardado para ti”